quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Primeiro capitulo Extras da serie Feios


NA PIOR
— Moggle? — sussurrou Aya. — Você está acordada?
Algo se moveu na escuridão. Uma pilha de uniformes de
dormitório se mexeu como se houvesse um pequeno animal
embaixo. Então uma silhueta saiu das dobras de seda e algodão, ergueu-se e flutuou até a cama de Aya. Pequenas lentes

encararam seu rosto, curiosas e alertas, refletindo a luz das
estrelas que entrava pela janela aberta.
Aya sorriu.
— Pronta pra ir pro trabalho?
Em resposta, Moggle piscou os faróis noturnos.
— Ai! — Aya fechou os olhos com força. — Não faz isso!
Detona a visão!
Ela ficou deitada na cama por mais um instante, esperando
os pontos de luz sumirem. A câmera flutuante se esfregou
em seu ombro pedindo desculpas.
— Tudo bem, Moggle-chan — sussurrou ela. — Eu só
queria ter visão infravermelha também.
Um monte de gente da sua idade tinha visão infravermelha, mas os pais de Aya tinham uma cisma com as cirurgias.
Eles gostavam de fingir que o mundo tinha parado na Era
da Perfeição, quando todo mundo tinha que esperar fazer
16 anos para ser modificado. Os coroas às vezes eram tão
fora de moda.
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Então Aya continuava com seu nariz grande — definitivamente feio — e a visão normal. Quando ela saiu de casa
para morar no dormitório, os pais tinham permitido que
instalasse uma tela ocular e uma dermantena, mas apenas
para que conseguissem contatá-la sempre que quisessem.
Ainda assim, era melhor do que nada. Ela mexeu o dedo
para ligar a interface da cidade no campo de visão.
— Epa — falou para Moggle. — É quase meia-noite.
Ela não se lembrava de ter cochilado, mas a festa dos
Tecnautas já devia ter começado. Agora provavelmente estava
tão cheia de Viciados em Cirurgia e Cabeças de Mangá que
ninguém notaria uma extra feia bisbilhotando.
Além disso, Aya Fuse era especialista em ficar invisível,
como bem provava sua reputação. Sua posição atual não saía
do canto da visão: 451.396.
Ela soltou um longo suspiro. Em uma cidade de um milhão de habitantes, estava apenas no nível de um extra. Aya
transmitia o próprio canal há quase dois anos, divulgara uma
grande matéria há uma semana, e ainda assim continuava
anônima.
Bem, aquela noite finalmente mudaria isso.
— Vamos nessa, Moggle — sussurrou ela, saindo da cama.
Havia um manto cinza amarrotado aos seus pés. Aya o
vestiu sobre o uniforme do dormitório, amarrou na cintura
e subiu no parapeito da janela. Virou devagar para o céu e
saiu, uma perna atrás da outra, para o ar fresco.
Colocou os braceletes antiqueda e olhou para o chão 50
metros abaixo.
— Certo, estou ficando tonta.
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Pelo menos não havia inspetores à espreita por ali. Essa
era a vantagem de dormir em um quarto no 13º andar —
ninguém imaginava que a pessoa fosse fugir pela janela.
As luzes de uma construção do outro lado da cidade eram
refletidas nas nuvens baixas e densas. O frio tinha gosto
de folhas de pinheiro e de chuva. Aya se perguntou se iria
congelar no disfarce, mas também não dava para colocar o
casaco do dormitório por cima do manto e esperar que as
pessoas não notassem.
— Espero que você esteja carregada, Moggle. É hora de
pular.
A câmera flutuante passou por cima do ombro de Aya, saiu
pela janela e colou no peito da menina. Era do tamanho de
meia bola de futebol, coberta por plástico resistente e quente
ao toque. Ao abraçar Moggle, Aya sentiu os braceletes tremerem, atraídos pelos campos magnéticos dos sustentadores
da câmera flutuante.
Ela fechou os olhos com força.
— Pronta?
Moggle tremeu em seus braços.
Agarrada à câmera com toda força, Aya se atirou no vazio.
Fugir era tão mais simples naqueles dias.
No aniversário de 15 anos de Aya, o melhor amigo de seu
irmão mais velho, Ren Machino, modificou Moggle. Ela só
pediu que a câmera ficasse veloz o suficiente para acompanhar
sua prancha voadora. Porém, como a maioria dos Tecnautas,
Ren se orgulhava das modificações que fazia. A nova Moggle
era à prova d’água e de choques, e possante o suficiente para
carregar um passageiro do tamanho de Aya pelo ar.
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Quase o que ela pedira. Com os braços em volta da câ-
mera, Aya caiu tão rápido quanto uma flor girando no ar até
o chão. Era mais fácil do que roubar uma jaqueta de bungee
jump. Desconsiderando o momento de tensão do pulo, foi
meio divertido.
Aya observou as janelas passando. Elas davam para quartos sem graça com decoração padrão decadente. Ninguém
famoso vivia em Akira Hall, apenas um montão de extras de
baixa reputação e aparências comum. Alguns egomaníacos
estavam sentados falando para as câmeras, ninguém estava
assistindo. A média de reputação ali ficava na casa dos 600
mil, um valor patético e desesperador.
A obscuridade em todo o seu horror.
Aya se lembrava vagamente da Era da Perfeição, quando bastava pedir por roupas fantásticas ou por uma nova
prancha voadora para elas surgirem de um buraco na parede
como se fosse mágica. Mas, hoje em dia, o buraco não dava
nada decente a não ser que a pessoa fosse famosa ou tivesse
méritos para gastar. E ganhar méritos significava ter aulas ou
realizar tarefas — o que quer que o Comitê da Boa Cidadania
mandasse, basicamente.
Os sustentadores de Moggle entraram em contato com
a malha magnética subterrânea e Aya dobrou os joelhos
para rolar ao cair. A grama molhada parecia uma esponja
encharcada, macia, porém gelada de dar calafrios.
Ela soltou Moggle e ficou deitada por um instante na
terra molhada pela chuva enquanto seus batimentos desaceleravam.
— Você está bem?
Moggle piscou os faróis noturnos outra vez.
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— Estou... mas isso ainda detona a visão.
Ren também modificou o cérebro da câmera flutuante.
Inteligência artificial de verdade ainda era ilegal, mas a nova
Moggle era mais do que apenas um conjunto de circuitos e
sustentadores. Com os ajustes de Ren, a câmera aprendeu os
ângulos favoritos de Aya, quando era o momento de fazer
um enquadramento panorâmico ou dar zoom, e até mesmo
a perceber pelo olhar da menina quando deveria gravar.
Mas, por alguma razão, Moggle não entendeu o lance de
piscar os faróis noturnos.
Aya manteve os olhos fechados e tentou ouvir com atenção
enquanto esperava os pontos de luz em seus olhos sumirem.
Não ouviu passos nem o zumbido de robôs inspetores. Nada
além de música abafada vindo do dormitório.
Ela ficou de pé e passou a mão na roupa para tirar a
sujeira. Não que alguém fosse perceber a grama molhada
grudada no manto, pois os Arautos da Fama se vestiam para
não serem notados. A roupa tinha um capuz e parecia um
saco, o disfarce perfeito para entrar de penetra em festas.
Ao acionar o bracelete antiqueda, uma prancha voadora
saiu de um esconderijo em meio aos arbustos. Aya subiu e
encarou as luzes brilhantes da Vila Perfeita.
Era engraçado que as pessoas ainda usassem esse nome,
mesmo que a maioria dos moradores não fosse mais perfeita
— não no velho sentido da palavra, de qualquer forma. A Vila
Perfeita estava cheia de Pixelados, Viciados em Cirurgia e vá-
rias outras tripos, manias e modas estranhas. A pessoa podia
escolher entre um milhão de tipos de beleza e esquisitice, ou
mesmo manter o rosto com que nascera pela vida toda. Agora,
“perfeito” significava qualquer coisa que atraísse a atenção.
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Mas uma coisa sobre a Vila Perfeita permanecia a mesma: a entrada não era permitida se a pessoa fosse menor
de 16 anos. Muito menos à noite, quando as coisas legais
aconteciam.
Especialmente se a pessoa fosse um extra, um perdedor,
um desconhecido.
Ao olhar a cidade, ela se sentiu engolida pela própria
invisibilidade. Cada uma das luzes brilhantes representava
uma pessoa dentre o milhão de habitantes que jamais ouvira
falar de Aya Fuse. E que provavelmente jamais ouviria.
Aya suspirou e avançou sobre a prancha.
As transmissões do governo sempre diziam que a Era da
Perfeição acabara para sempre, que a humanidade estava
livre de séculos de tolice. Afirmavam que as divisões entre
feios, perfeitos e coroas não existiam mais. Que os últimos
três anos desencadearam um mar de novas tecnologias que
colocariam o futuro em movimento novamente.
Mas, no entendimento de Aya, a libertação não mudara
tudo...
Ainda era um saco ter 15 anos.

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